sexta-feira, 30 de maio de 2014

Intensidade do Sopro Cardíaco: 4+ ou 6+?

     No estudo da semiologia cardiovascular, deparei-me entre um duelo de conceitos, de um lado aqueles que defendem ferozmente que a intensidade dos sopros cardíacos devem ser classificados em até 4+ (falamos 4 cruzes) com a defesa de ser algo mais sintético e simples, do outro aqueles que acham tão natural que a intensidade seja em até 6+, que nem entendem o porquê do uso dessas tais simplórias 4+.

E no meio dessa disputa conceitual, fiquei no "e agora? qual é o mais adequado?"

[Para quem ainda não sabe o que é sopro, intensidade, cruzes..:
Sopros: são produzidos por vibrações decorrentes de alterações do fluxo sanguíneo que podem ser decorrentes de alterações hemodinâmicas e/ou estruturais dos aparelhos valvares ou das câmaras cardíacas ou vasos. Quando auscultamos um sopro devemos descrever: situação no ciclo cardíaco, localização, irradiação, timbre, tonalidade e intensidade (caracterizamos a intensidade em escala de cruzes de forma crescente e é daqui que a surge a discussão]

Iniciei uma busca simples na literatura, comecei pelos livros de semiologia, pelo clássico Porto & Porto Semiologia Médica (7ed.), e me deparei com as defendidas 4+ cruzes pelo grupo da semiologia:


Procurei no livro do Ramos Jr., chamado Semiotécnica da Observação Clínica (5ed.), e achei uma interessante ressalva após a descrição da intensidade em cruzes, que os convido a ler na imagem do livro abaixo:

Essa ressalva da existência de uma gama de valores intermediários e os erros decorrentes do seu uso sem maiores descrições do sopro, apresenta um ponto importantíssimo: descrição da ausculta cardíaca detalhada e que não se resume a intensidade, mas sim a todos esses parâmetros descritos por Ramos Jr e enumerados no início deste post. E será que na necessidade de agregar mais dados desses dois pontos, surge o uso maior das 6+?

A classificação em 6+ surge com Levine e ganha proporções após a publicação em 1933 com o colega Freeman intitulada "The clinical significance of the systolic murmur. A study of 1000 consecutive “non-cardiac” cases" que se utilizou da classificação em 6 graus dos sopros sistólicos:
Grau 1: sopro muito leve, dificilmente audível
Grau 2: sopro leve imediatamente audível
Grau 3: sopro moderadamente alto
Grau 4: sopro alto
Grau 5: sopro muito alto, audível com estetoscópio levemente encostado na pele do paciente
Grau 6: sopro muito alto, audível imediatamente após desencostar o estetoscópio da pele do paciente

Procurando literaturas clássicas da clínica, encontrei em um capítulo eletrônico do Harrison Principles of Internal Medicine intitulado Approach to the patient with a heart murmur também a indicação do uso da classificação em seis graus com pequenas variações:
Grau 1: sopro muito leve, ouvido apenas com muita atenção
Grau 2: sopro leve facilmente audível
Grau 3: sopro alto sem frêmito no foco de maior intensidade
Grau 4: sopro muito alto com frêmito
Grau 5: sopro muito alto, audível com estetoscópio levemente encostado na pele do paciente
Grau 6: sopro muito intenso, audível mesmo com estetoscópio desencostado da pele do paciente

    E continuando a busca nas literaturas clássicas da medicina e as publicações vinculadas ao Pubmed, encontrei a utilização maciça da classificação em 6+. Para citar duas de grande impacto, além da bíblia da cardiologia Braunwald's Heart Disease, a American College of Cardiology e American Heart Society em seus Guidelines for the Management of Patients With Valvular Heart Disease se utilizam na descrição das intensidades dos sopros cardíacos a classificação em 6+

Então vocês devem estar se perguntando "e os sopros diastólicos?" e "e para que se usa 4+?"

      Para os sopros diastólicos a maioria das publicações utilizam a classificação de 6+ também para os sopros diastólicos, como utilizado inclusive nessa publicação abaixo do JAMA, que teve como objetivo a revisão de evidências sobre a precisão e a acurácia do exame clínico para a regurgitação aórtica:

    No entanto, algumas universidades em materiais próprios ou cursinhos especializados em cardiologia, utilizam para os sopros diastólicos, a classificação em 4+! 
Isso mesmo! 6+ para sopros sistólicos e 4+ para sopros diastólicos! 
A única publicação que encontrei sobre essa metodologia foi desse livro chamado Pathophysiology of Heart Disease: A Collaborative Project of Medical Students and Faculty editado por Leonard Lilly:
      Depois de toda essa busca, percebi que há uma aceitação na literatura científica maior pelo uso da 6+ do que 4+, o que pode se justificar por mais valores intermediários para a refinamento da técnica semiológica e agrega mais elementos a sua descrição e o seu uso também permite uma melhor comunicação e análise de dados para a comunidade médica. 

        No entanto, o que fará maior diferença na sua prática clínica será uma boa execução da técnica de ausculta cardíaca, descrição completa de todos elementos auscultados e sua a capacidade de discutir sua avaliação e a correlação com a literatura científica.

E pergunto a vocês: qual é a classificação no seu serviço ou que foi ensinada na semiologia ou internato?? E qual a sua preferência??

Elayne Oliveira
Presidente da Liga de Cardiologia da UNICAMP

Referências:
- José Ramos Jr. Semiotécnica da Observação Clínica. Volume II, Parte VI, 5ed. 538p. Editora Sarvier.
- Porto & Porto. Semiologia médica. 7 ed. Editora Guanabara Koogan, 2014.
- A. R. Freeman, Samuel A. Levine. The clinical significance of the systolic murmur. A study of 1000 consecutive “non-cardiac” cases. Ann Intern Med. 1933;6(11):1371-1385.
- Mark E. Silverman and Charles F. Wooley. Samuel A. Levine and the History of Grading Systolic Murmurs. Am J Cardiol 2008;102:1107–1110.
- Kanu Chatterjee. Auscultation of cardiac murmurs. UpToDate. Atualização em: 23 de Abril de 2014. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/auscultation-of-cardiac-murmurs.
- Patrick T. O'Gara; Joseph Loscalzo. Chapter e13. Approach to the Patient with a Heart Murmur. In: Harrison's Principles of Internal Medicine. Ed. Mcgraw-hill. 18th Edition, 2011.
- BRAUNWALD, E., ZIPES, D.P., ET AL - Braunwald's Heart Disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine, 9th ed, Saunders Elsevier, 2011.
- 2014 AHA/ACC Guideline for the Management of Patients With Valvular Heart DiseaseA Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines.J Am Coll Cardiol. 2014
- Niteesh K. Choudhry, Edward E. Etchells. Does This Patient Have Aortic Regurgitation?JAMA. 1999;281(23):2231-2238
- Leonard Lilly. Pathophysiology of Heart Disease: A Collaborative Project of Medical Students and Faculty. 5th ed. 2010.

Sugestão de leitura:
Cardiac Auscultation: Rediscovering the Lost Art. Curr Probl Cardiol 2008;33:326-408. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0146280608000480#

5 comentários:

  1. Parabéns, post muito bem preparado, ajudou muito! :)

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  2. Muito boa sua explicação. Parabéns. Onde atuo utilizam tanto com 4+ quanto com 6+, depende do profissional.

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  3. Perfeita análise!

    Eu estava estudando pelo Porto quando deparei-me com a escala 4+ e resolvi pesquisar melhor na internet já que meus professores preconizam a escala 6+.

    Agora entendi!

    Grata

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  4. Excelente post, muito bem estudado e preparado! Realmente no serviço onde sou interna há divergência entre os profissionais, mas há maior preferência para as 6+
    Obrigada ! Parabéns !

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  5. Muito boa essa matéria, com muito conteúdo!
    Cardiologista que escreveu, os meus sinceros parabéns.

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